Umbanda sem fronteiras

Por Dellano Rios/Repórter do Diário do Nordeste – Rio Grande do Norte
Foto de Thiago Gaspar

Há mais de 10 anos, o antropólogo cearense Ismael Pordeus Jr. [foto ao lado] pesquisa o fenômeno de transnacionalização das religiões afro-brasileiras. O campo de estudo é Portugal, onde a Umbanda e o Candomblé se expandem e conquistam novos adeptos. Em ´Portugal em transe´, livro que lança nesta terça-feira, às 18h30, na reitoria da UFC, o cientista social traça um panorama de sua pesquisa em território luso, sobre a qual falou com o Caderno 3.

Como a Umbanda chegou até Portugal?
— Chegou pelos migrantes portugueses que vieram ao Brasil e se iniciaram, depois regressando a Portugal. O jornalista João do Rio, em “As religiões do rio” (1904), já mostra que existiam estrangeiros nos terreiros de Macumba do Rio de Janeiro, no começo do século passado. Foi importante a migração dos anos 1950, do pós-guerra. Além de Mãe Virgínia, a primeira mãe-de-santo que localizei no país, encontrei outras duas senhoras que vieram para cá nessa época. Elas não fundaram terreiro, mas faziam sessões na própria casa, não muito longe da Universidade de Lisboa. Hoje não é só a Umbanda que está em Portugal. O Candomblé e a Jurema, pernambucana, já se instalaram lá.

E quanto a participação dos brasileiros nesta transnacionalização?
— O que me chamou mais a atenção na pesquisa foi que, ao contrário do que se poderia supor, por causa da alta migração brasileira (hoje Portugal deve ter cerca de 140 mil brasileiros), a participação brasileira é irrelevante nestas religiões. As mães e pais-de santo brasileiros são poucos. Conheci, pessoalmente, três pessoas. Um dos terreiros que é meu objeto de estudo, o Pai-Oxalá, se localiza em Braga. Braga é uma cidade de tradição católica muito grande. No centro desta potência católica, você tem um terreiro onde trabalham 37 médiuns, a dar consultas aos sábados, onde vão cerca de 200 pessoas. Uma coisa espantosa. Pelos dados de outras pessoas, que começaram a pesquisar depois de mim, existem cerca de 40 terreiros em Portugal. Eu trabalhei com 17 deles. Quando comecei em 1996, só tinha conhecimento de quatro, todos saídos dessa matriz inicial (Terreiro Ogum Megê).

Qual a razão desta expansão, dos anos 90 para cá?
— Tudo se deu após a Revolução dos Cravos (que derrubou, em 1974, o regime salazarista), quando começa a liberdade de culto. Foi nessa abertura que a Igreja Universal do Reino de Deus também se instalou. Há uma expansão do campo religioso, do mercado religioso e, consequentemente, de uma economia - de bens simbólicos, mas que rendem dinheiro. Conheci um pai de santo brasileiro que tem terreiros em Cintra, em Mafra e Vila Real de Santo Antônio, já fronteira com a Espanha. Ele faz uma sessão por semana em cada um destes terreiros e, para falar com os mediuns, paga-se 10 euros.

Você fala de uma expansão, em Portugal, a partir da liberação dos cultos religiosos. No entanto, os culto afro-descendentes floresceram no Brasil mesmo sob perseguição policial. Em Portugal, elas não furaram o bloqueio da ditadura de Salazar?
— Não. Aí entra um outro problema: a aliança do Estado e da Igreja era muito alta. A concordata do Estado Novo (português) com o catolicismo foi uma coisa muito importante. Não teve nada melhor por Estado que a aparição de Nossa Senhora de Fátima. Salazar era uma pessoa retrógrada em visão de mundo. Era a terra, a agricultura, a tradição, a família, a pátria e a propriedade... toda essa idéia fascista. Neste período, o que ficou foram fragmentos manifestos na bruxa. Aí você tinha o transe. Eu lembraria de toda a repressão, à ferro e fogo, na instalação da Igreja em Portugal, em que se combatia qualquer outra religião, classificando tudo de bruxaria. Um massacre impressionante de mulheres foi praticado pela Igreja. Você vai ter resquícios nas práticas camponesas, ligadas a outras práticas, já perdidas, que não sabem mais de onde vêm.

As práticas de bruxaria foram incorporadas à Umbanda e ao Candomblé em Portugal?
— Elas não deixam de ser incorporadas. No processo de transnacionalização, você não coloca o que existe em cima do nada. O imaginário só pode ser construído em cima de algo que já existe. Ele precisa de algo para se apoiar - mesmo que seja outro imaginário. Onde vai se montar esse imaginário é no imaginário do próprio país. A Umbanda está na Espanha, na Itália, na Argentina e no Uruguai, por que há partes dessas culturas que são místicas e absorvem essas religiões. O mesmo acontece com a Santeria nos Estados Unidos. Levada pelos cubanos, lá ela encontrou elementos da cultura do próprio país que a fizeram florescer.

O que isso significa para estas religiões?
— A Umbanda, o Candomblé e, mais recentemente, a Jurema pernambucana, que eram chamadas de seitas no Brasil, se transnacionalizaram, isto é, se universalizaram. Todas essas religiões que, numa sociologia do século 19, eram consideradas seitas, segundo as categorias weberianas, no processo de globalização, vão além das fronteiras dos países em que apareceram e buscam o universal.

Você citou a pouca participação do elemento brasileiro na Umbanda em Portugal. E quanto aos africanos, importantes na constituição destas práticas no Brasil, como se dá sua participação nas religiões luso-afro-brasileiras?
— Como falei, os brasileiros convertidos são poucos. Eles vão para consultas. Mas lembre que a situação do migrante é sempre especial: é uma situação de limite, de fronteira. Eles já são vistos como subalternos na população. Na Costa da Itaparica, em Lisboa, você já tem terreiros que são mais freqüentados por brasileiros. Também há africanos participando destes cultos. No livro, falo do terreiro de uma angolana. Ela tinha transe desde criança e procurou na religião afro-brasileira o local onde pudesse desabrochar o transe de forma correta.

O número de participantes de origem africana é maior do que o de brasileiros nos terreiros?
— Não. Nos dois casos, a participação é pequena. A maioria das pessoas que vai aos terreiros é portuguesa. Há uma busca de um outro tipo de religiosidade, que não é o catolicismo, pois este não responde mais à necessidade dessas pessoas. Eles estão em busca de uma religião que permita performances. E nessas performances está a técnica do transe, da possessão. Eles estão em busca de outras experiências. Tudo isso porque o fenômeno do transe é universal, algo que as pesquisas da década de 70 já demonstraram.

No Brasil, mesmo com o recrudecimento da repressão aos cultos afro-brasileiros, essas religiões ainda são vistas com muito preconceito. Como é a situação em Portugal?
— Lá também tem muito preconceito. Dona Virgínia tinha um terreiro, onde residi por dois meses em pesquisa de campo, localizado no subsolo de um prédio residencial, onde havia sessão três vezes por semana, com atabaques e tudo. A polícia foi lá, uma única vez, por denúncia de vizinho. Ela mostrou a licença que ela podia funcionar. Embora, os pais e mães-de-santo não tenham conseguido reconhecer os cultos como religião. A maioria dos terreiros leva o nome de centro cultural ou algo dessa ordem.

Em que medida o caso da Umbanda e do Candomblé em Portugal ajuda a compreender os fenômenos religiosos no Brasil?
— O mais interessante, para mim, como antropólogo, é ter entendido o equívoco que há quando se fala a respeito das práticas religiosas, ditas populares, do Brasil. Em geral, elas são associadas ao misticismo do negro e do índio. Não me parece ser este o caso. Além da língua, vem de Portugal toda a prática de misticismo e crendice. Toda essa visão de mundo mágica, das pessoas que têm a ilusão que, por meio de práticas mágico-religiosas, elas podem intervir em seu destino. Aí também entra o catolicismo, o pentencostalismo e todas as outras religiões. Para os devotos, não tem essa história de que religião é só lá pra cima. Ela é pro aqui e agora.

Comentários

Anônimo disse…
Não gostei da imagem ou quadro que aparece ao fundo. O homem quase nú com flexas pelo corpo, a semelhança de São Sebastião. Pode dar margem a outra interpretação.

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